Começo os trabalhos com um desabafo sobre "Tropa de Elite", o filme que virou fenômeno, mas pelos motivos errados.
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Há alguns meses, o assalto que levou um Rolex do apresentador Luciano Huck causou um alvoroço na opinião pública. Mas não foi exatamente o assalto o motivo da falação, e sim a reação da “vítima”. Luciano publicou uma carta na Folha de São Paulo em que se dizia “envergonhado de ser paulistano, um brasileiro humilhado por um calibre 38, e um homem que correu o risco de não ver os seus filhos crescerem por causa de um relógio”. Bastou pra que blogueiros, intelectuais e toda sorte de opiniões atacassem a visão reducionista de alguém que não conhece nada da real violência ou defendessem o direito de um cidadão manifestar-se contra qualquer tipo desta.
Como publicado na revista “Época” desta semana, isto revela um pouco sobre a complexidade da alma brasileira frente à violência. Nas antologias do folhetim, a separação entre bem e mal era clara e de que lado ficar também. Mas já se foi o tempo em que bandido roubava e mocinho prendia. Estamos confusos. Num sistema ideal, sujeito que infringe a lei deve ser preso por uma polícia honesta, julgado por um sistema ágil, baseado em um código penal coerente e se condenado, reabilitar-se numa prisão modelo para voltar à sociedade que o espera de braços abertos. Não temos nenhuma dessas coisas e a sociedade já não sabe mais de que lado ficar. Não sabemos mais com o que nos identificar. A causa e efeito é uma rede vasta de opiniões que nos deixa cada vez mais na dúvida sobre o que é certo ou errado. “A polícia ganha pouco! Policial não presta! Traficante tem que morrer! Crime é falta de oportunidade! Pela liberação das drogas! O problema é federal! O problema é carioca! O problema é seu! Eu não tenho nada com isso!” Ninguém tem nada com isso até que tem seu Rolex roubado. Ninguém tem nada com isso porque nos acostumamos a delegar responsabilidades. Foi assim com a Igreja perdoando nossos pecados, com os pais dizendo o que podemos ou não fazer, com o Estado cuidando da educação, saúde e alimentação de nossas crianças, e a polícia pra nos proteger. E quando essas necessidades básicas não são atendidas, nos apegamos a qualquer um que faça por nós, que demonstre coragem ou que exploda em revolta como gostaríamos de fazer. Durante a ditadura militar, a simpatia por personagens infratores era marca da música popular brasileira. Os compositores enxergaram o contraventor como um aliado. Chico Buarque, Jorge Ben, Raul Seixas, Bezerra da Silva exaltaram como heróis os batedores de carteira, meninos de rua, ladrões, cangaceiros e até assassinos em obras como Ópera do Malandro, Meu Guri, Chame o Ladrão, Charles Anjo 45, Al Capone, Defunto Caguete, entre outras. O papel desses personagens era provocar a ira de quem provocava a nossa. E se antes a elite cultural cumpria tal papel, essa confusão de sentimentos e percepções abriu espaço pra que a periferia soltasse a voz através de representantes como Racionais MC’s, e Facção Central, com as mais transgressoras apologias. Malandro já foi ídolo, mas hoje, o ídolo é o Capitão Nascimento.
Tropa de Elite não é fenômeno por causa do saco, mas porque trouxe duas horas de regozijo pra quem anda tão perdido. Com um roteiro amplo e por isso, difícil, José Padilha explora as várias nuances do problema violência e sua complexidade, sem querer definir solução isolada. Porque não há. Como disse acima, estamos confusos. Queremos que a polícia prenda os ladrões, mas as ONG’s do morro não querem que ela os machuque, a classe média doa para o “Criança Esperança” na fé de que aquelas crianças não roubem seu carro no futuro e os playboys que fazem passeata contra a violência são os mesmos que compram maconha e sustentam o tráfico. Tropa de Elite é a representação do caos entre o certo e o errado que a luta pela “paz” gerou. Só que não falo do caos social e sim, do caos pessoal. A angústia que todo brasileiro sente nessa insustentável situação está representada no Capitão Nascimento (Wagner Moura). Se fosse mais um personagem, se fosse só mais um zero dois ou zero cinco, provavelmente sentiríamos repulsa pela crueldade e abuso de poder que acompanham sua narrativa. E é engraçado perceber que é exatamente isso que sentimos por outros policiais que só vemos agindo. Com o Capitão Nascimento é diferente. Resultado de um trabalho brilhante do texto e de Wagner Moura que imprimiu humanidade a um personagem frio, aproximando-o do público, sabemos o que ele está sentindo. Capitão do BOPE, com a mulher grávida de nove meses e síndrome do pânico, Nascimento procura por um substituto no comando do batalhão. E nessa jornada, vai desenhando em sua narrativa a realidade da violência física, ideológica e psicológica a que é submetido. Mesmo não estando envolvido com todos os episódios do filme, como os exemplos de corrupção, de falhas no sistema, de abuso de poder dos comandantes que simplesmente não permitem que o trabalho seja feito pra proteger seu estado de conforto, é no Capitão Nascimento que encontramos voz pra gritar contra toda aquela insanidade. A tortura, assassinato e violência gratuita que comete são admitidos pelo espectador como parte de um ciclo instintivo de revolta quando não se suporta mais uma situação. Quando não se acha solução nenhuma, qualquer solução serve. Quando ninguém faz nada, o que ele faz é excitante, justo e direito seu. Capitão Nascimento é só mais um ídolo entre tantos que já vieram e ainda virão. E assim, continuamos nesse sistema de punição e não de combate ao crime. Numa busca individualista por qualquer forma de proteção, sustentando essa guerra animal em que o mais forte vai continuar vencendo (leia-se tráfico de drogas). E em que vez ou outra uma voz fala por nós. Não é à toa que até Luciano Huck mandou chamar o Capitão Nascimento.Tropa de Elite tem um roteiro excepcional, atuações inspiradas no limite do crível e uma direção acertada, mesmo que às vezes displicente demais para o meu gosto (meu gosto, deixo claro). E é por isso que esta bela obra, absolutamente passa a fazer parte do meu TOP 5 do recente cinema nacional.
PS: Pra concluir, deixando claro que não cobro isso do filme porque sua proposta é outra e muito mais original inclusive, repito o lugar-comum mais verdadeiro que já ouvi: a única solução para esse e muitos outros problemas do Brasil é EDUCAÇÃO, EDUCAÇÃO e EDUCAÇÃO.
Ficha Técnica:
Direção: José Padilha
Roteiro: Bráulio Mantovani,José Padilha,Rodrigo Pimentel
Elenco: Wagner Moura, Milhem Cortaz, Fernanda de Freitas, Caio Junqueira, André Ramiro, Maria Ribeiro, Fernanda Machado, Marcelo Escorel, Bruno Delia, Thelmo Fernandes
Sinopse: Rio de Janeiro, 1997. Nascimento, capitão da Tropa de Elite do Rio de Janeiro, é designado para chefiar uma das equipes que tem como missão “apaziguar” o Morro do Turano por um motivo que ele considera insensato. Mas ele tem que cumprir as ordens enquanto procura por um substituto. Sua mulher, Rosane, está no final da gravidez e todos os dias lhe pede para sair da linha de frente do Batalhão.