Isso foi só pra ilustrar o poder do esforço talentoso. Esforço que Heitor Dhalia também demonstrou ao filmar em esquema de cinto apertado o inventivo "O Cheiro do Ralo", com cachês simbólicos para o elenco e zero de salário para Selton Mello, o protagonista. Deu tão certo que Dhalia entrega ainda no começo de fevereiro a primeira cópia de "À deriva", filme com locações em Búzios, e elenco que reúne o francês Vincent Cassel, Débora Bloch, Camilla Belle (a californiana bonitinha, filha de uma brasileira com um americano, vista em "10.000 A.C."), Cauã Reymond e a estreante Laura Neiva.
Ambientada na década de 1980, a trama de "À deriva" mostra as angústias da adolescente Filipa (Laura) que viaja para um balneário com seus pais (Débora e Cassel), cujo casamento está em pleno processo de atomização. Em meio às explosões hormonais de sua idade, Filipa descobre questões como a infidelidade, a intolerância e a morte.
____________________________________________________________________
Mas esse post não é pra falar de "À deriva", apesar de ser um registro importante para um filme que não perco por nada. E só não perco pelos créditos que "O cheiro do ralo" conquistou para o diretor. Rodado com apenas R$ 315 mil, reunidos entre sócios privados e pelos produtores e executivos, o filme rende o público com seu roteiro visceral e seus quadros inspirados. No lançamento, em 2007, fiz meu estudo particular que registro aqui, como homenagem ao melhor do cinema nacional.


Direção Heitor Dhalia. Roteiro Heitor Dhalia e Marçal Aquino. Com Selton Melo, Fabiana Guglielmetti, Flávio Bauraqui, Lourenço Mutarelli, Martha Meola, Paula Braun, Sílvia Lourenço.
Desde a virada para o século XXI, um festival de questionamentos sobre o sentido da vida, a razão da existência e a espiritualidade vieram à tona. Só em 2007, os documentários “Quem Somos Nós” e “O Segredo” caíram na boca do povo e viraram assunto em mesas de bar, reuniões de empresas e palestras motivacionais. Pra quem está mais envolvido com as crenças de uma nova era, isso tudo tem um sentido mais amplo e é conseqüência de uma razão maior. Por isso, apesar da chuva de críticas aos dois documentários, eu gosto de ambos. O que isso tem a ver com o filme? Já vão entender.
O Cheiro do Ralo consagra o diretor e roteirista Heitor Dhalia, que já havia surpreendido com o inventivo Nina, e consegue a proeza de tirar do campo do misticismo esses questionamentos e trazê-los da forma mais crua para a realidade comportamental. Essa forma humanizada de abordar a busca pela resignação foi da salvação coletiva de “Armagedon”, “Independence Day”, “Epidemia” para as angústias do indivíduo em sucessos como “Os Sinais”, “Extermínio”, “Abismo do Medo”.
O Cheiro do Ralo é ainda mais humano. No papel principal, Lourenço (Selton Melo) é dono de uma loja de penhores, sem amigos e sem capacidade de amar. Um homem amargurado e oprimido pelas convenções sociais, que termina um casamento com “os convites já na gráfica”. Dhalia metaforiza o vazio das relações e a necessidade de preenchê-lo através do personagem Lourenço que usa da necessidade financeira de seus clientes para se preencher e sentir-se um pouco menos desprezível. Sua arrogância e desprezo pelos clientes são as armas que ele encontrou pra se sentir um pouco melhor, pelo menos melhor do que eles. Isso já o tornaria asqueroso, e um romance que poderia atenuar acaba piorando a situação quando na verdade o que Lourenço quer de uma moça que trabalha numa lanchonete, é possuir a sua bunda. Comprar mesmo. É assim que O Cheiro do Ralo começa, com um plano-sequência de uma bunda, construindo a primeira relação com os sentimentos superficiais que suprem nossas carências. Apesar da atmosfera dramática, O Cheiro do Ralo está mais pra humor-negro com sacadas divertidas já que em situações como essas é melhor rir pra não chorar. Até aqui, a impressão que temos é que Lourenço não merece nenhuma chance. E é aí que a introdução desta resenha faz sentido. Por mais reprováveis que sejam suas atitudes, O Cheiro do Ralo consegue causar uma identificação incômoda do público com o personagem, ou ainda, com a frase repetida por ele várias vezes: “a vida é dura”. Por pior que sejam suas atitudes, sentimos seu vazio imenso, que se não justifica, ao menos atenua seu comportamento, fruto de uma solidão involuntária, que em maior ou menor grau, todos sentimos nos tempos de hoje. Com vários simbolismos, o diretor consegue traduzir sentimentos. Nos caminhos de Lourenço entre casa, trabalho e lanchonete, vemos sua pequenez, num plano inteligente em que a maior parte da tela é ocupada por um paredão e o personagem diminuto no quadro segue a sua vida sem muita perspectiva ao fundo, numa clara sensação de clausura, mesmo num ambiente aberto como a rua. Assim, passamos a entender Lourenço não como um vilão, mas como alguém profundamente triste e de atitudes por vezes ingênuas. Quando um cliente oferece um olho de vidro que supostamente pertenceu a um ex-combatente da segunda-guerra , Lourenço se interessa tanto que compra e conta a história pra todos colocando seu pai como o usuário falecido do objeto. E mais tarde, quando compra uma prótese mecânica diz: “Daqui a pouco eu consigo montar o meu pai”, o que sugere a ausência de uma figura paterna na vida do personagem e mais do que isso, revela que comprar coisas antigas passou a ser sua forma de preencher a sua vida com a vida dos outros. Lourenço compra a vida dos outros. E comprar passa a ser a única coisa que faz sentido para ele, mesmo se for a bunda da moça. Essa falta de capacidade de se relacionar emocionalmente com outras pessoas fica clara quando ao retornar no bar, ele confunde a nova funcionária com a antiga, e mesmo de frente para ela pede que dê uma viradinha pra tentar reconhecê-la.
Até agora, o que não parece ter sentido claro é o título do filme. Na loja de penhores a única coisa que ameaça a superioridade de Lourenço frente aos clientes e pode abalar a única forma que ele encontrou de se sentir melhor é o cheiro do ralo. Um entupimento que embriaga o local com cheiro de esgoto. E o seu temor é tanto que Lourenço faz questão de esclarecer pra todos, todos que ali entram que o cheiro é do ralo. “E quem usa esse banheiro? É você. Então o cheiro vem de você”. Essa frase de um cliente insatisfeito é o que causa uma confusão na vida de Lourenço e o cheiro do ralo passa a incomodar. “O Segredo”, “Quem somos nós” já passaram essa mensagem, os críticos não gostaram porque era literal demais. Então se delicie com esse filme. Ou descubra que por pior que a sua vida possa parecer, o cheiro do ralo vem de você.
____________________________________________________________________